domingo, 19 de março de 2017

Oração de Sapiência Ano Lectivo 2017, Universidade Politécnica por João Mosca

Foto: DW
Muito obrigado à Escola Superior de Gestão, Ciências e Tecnologias da Universidade Politécnica, e em especial à Directora Prof.ª Irene Mendes, pelo convite para proceder à aula de sapiência do ano lectivo de 2017. O tema que me foi sugerido é O papel da universidade face à crise económica. Este texto refere-se à universidade no seu conceito amplo, como instituição. Não se faz alguma alusão a casos particulares, excepto quando especificado no texto.

Ao receber o convite e a sugestão do tema, de imediato, surgiu o dilema entre as temporalidades de uma crise conjuntural e de um ensino que deve possuir estabilidade numa perspectiva de longo prazo, considerando que a universidade é uma construção permanente. Infelizmente este dilema pode ser atenuado quando se admite que existem sociedades e economias que vivem em crise de longa duração. Alguns economistas moçambicanos argumentam neste sentido. Isto é, a teoria dos ciclos não possui plena verificabilidade na nossa realidade, pois os períodos de progresso são, regra geral, fictícios. Isto significa que o crescimento que se verificou não era sustentado por uma economia estável, sendo ainda muito vulnerável a choques de diversos tipos (economia e preços internacionais, conflitos, mudanças climáticas, etc.). Os períodos de crise foram os dominantes.

Nesta apresentação, parte-se do pressuposto que tanto a sociedade, a economia como a universidade, estão em crise há décadas. Esta apresentação começa-se pela economia, seguindo-se a sociedade e, finalmente, a universidade. Posteriormente, centra-se no foco expresso pelo título desta intervenção, referindo sobre o papel da universidade de forma abstracta, para, depois, reflectir sobre a necessidade de libertar esta universidade, hoje, em Moçambique.

CONTEXTO

A economia moçambicana não entrou em crise em 2016. Para não ser longo e apresentar uma fundamentação histórica, a crise da economia aprofundou-se (pico de crise de longo prazo), principalmente desde 2008, após a crise na década de oitenta do século XX. Enquanto os discursos publicitavam e com alguma correspondência com a realidade, que a "economia vai bem", "Moçambique é um dos grandes destinos do investimento estrangeiro", "exemplo de estabilidade política","crescimento robusto", a caixa negra da sociedade e da economia estavam fermentando as condições do que se chama agora a crise financeira ou crise da dívida. Existiam sinais evidentes do crescimento rápido da dívida externa e da dívida pública; do agravamento do défice da balança comercial e, em particular, da balança alimentar. Assistiu-se a grandes investimentos públicos com poucos efeitos sobre a produção e, muitos deles, de manifesta tentativa de identificação de uma governação, pese embora não possuíssem uma "marca" identitária. A dependência do exterior aumentava por via do investimento externo sem ou com baixa poupança interna, do orçamento suportado por donativos (embora com tendência decrescente), de uma economia dependente de importações e do aprofundamento da acumulação no exterior, isto é, de uma transferência de recursos da economia moçambicana para o exterior. A inflação, embora com tendência decrescente, possuía uma grande variabilidade. Existiam estudos que argumentavam que a taxa de câmbio estava sobrevalorizada. Os indicadores internacionais do Índice de Desenvolvimento Humano, da competitividade e do ambiente de negócio, entre outros, revelavam variações de pequena amplitude, em positivo e em negativo, mantendo o país na cauda dos rankings internacionais. Em resumo a "boa saúde" da economia era fictícia.

Estes sinais tinham e têm os seus fundamentos na estrutura económica colonial aprofundada após a independência, assente na extracção de recursos naturais e de trabalho barato, na pouca inovação e geração de emprego, no investimento e nos gastos públicos sustentados pela poupança externa, num padrão de crescimento criador de pobreza e de desigualdades e num Estado interventivo, protector e, simultaneamente, capturador de recursos, utilizados, em muitos casos, em defesa dos interesses de elites e da reprodução dos poder, criando ineficiência económica e baixa competitividade da economia. Vários textos foram publicados nos últimos anos sobre a má gestão, ineficiência, dívidas, maus serviço aos cidadãos, partidarização, financiamento ilícito de actividades da Frelimo e corrupção nas empresas públicas.

Um modelo com estas características possui, intrinsecamente, os factores que, combinados em determinados momentos com contextos internacionais, situações de conflito, calamidades naturais e outros, geram crises de diferentes graus de gravidade.

A crise social e de valores não é de menor importância e exerce influências recíprocas e múltiplas na economia e no sistema político. Cresce na sociedade o consumismo, onde os novos-ricos assumem uma relação nervosa com o dinheiro, sem o pudor do questionamento social sobre a origem a riqueza. Desenvolve-se o individual e o espírito do desenrasca, ultrapassando os limites das liberdade do outro e do colectivo, manifestando-se em coisas simples, como na condução viária, no lixo, na cortesia. Também em coisas menos simples como no "disse que disse" ou "não entendi assim". Ou ainda no não-cumprimento de compromissos onde a palavra não é lei, mas simples verbo, muitas vezes, utilizado no engano, assente no cinismo que até parece ter sido desenvolvido como mecanismo de defesa em contextos autoritários e de gestão neo-patrimonial.

O tempo gasto em relações lobistas, de influência e a troca de favores ou mesmo a criação de dificuldades para a venda de facilidades, assume a normalidade a todos os níveis. Em resultado, desenvolve-se uma sociedade não-meritocrática, hierarquizada pelo poder de influência num sistema social onde o "mais velho", o "patrão" o "pai", o "chefe", não são confrontados e a quem se deve respeito mesmo quando por estes desrespeitado. Aniquila-se a dúvida metódica e sistemática descarteniana e instala-se o free-rider, onde se calculam os riscos e as vantagens da acomodação e alinhamento na "ordem". Estas realidades obstaculizam o exercício da cidadania.

Muita da elite que domina as burocracias partidárias e da governação utilizam as suas funções de servir o povo para se servirem a si próprias. A promiscuidade entre a política e os negócios, a instrumentalização do Estado como plataforma de distribuição de recursos e de negócios, e da corrupção, estrutura-se hierarquicamente, onde o "chefe" reparte a nhama, configurando um sistema articulado de alianças assentes em laços familiares, origem regional e étnica, e no cartão do partido. Assim se instala o caciquismo e a bajulação ("lambebotismo"). Forma-se um Estado ineficaz e ineficiente no exercício das suas funções, fere-se gravemente o alicerce fundamental da democracia, que é a independência dos poderes e acontecem ameaças de diferentes formas às liberdades individuais dos cidadãos. As elites políticas distanciam-se dos governados, perdem a sensibilidade do sofrimento dos mais pobres e, até, de forma indigna e despudorada, aconselham as miudezas de galinha e o tsekee para matar a fome.

Neste contexto, emerge o que um amigo chama de "capitalismo sem capitalistas", assente em rendas, nas relações promíscuas com a política. Surgem os empresários não-shumpeterianos que preferem a protecção do Estado e de sócios políticos e não a concorrência, que não conhecem a ética capitalista weberiana e preferem as "boladas". Surgem repentinamente manifestações exteriores de riqueza acompanhadas de "gingação", que, como diz uma expressão espanhola, os novos-ricos parecem-se a "niños com un zapato nuevo". Assim não é possível desenvolver uma economia competitiva, aberta e inclusiva. Assim é coerente que a pobreza não recue, que o número de pobres aumente e que cresçam as desigualdades sociais e territoriais.

Para terminar esta parte, é justo destacar que persistem na nossa sociedade cidadãos conscientes, éticos, portadores dos valores da justiça, da solidariedade, do profissionalismo e tecnicamente competentes, que procuram exercer a cidadania com coragem e verticalidade. Reconheço em muitos estas qualidades e, nesta sala, existe uma boa representação destes moçambicanos. Existem empresários inovadores e que desempenham a sua função de forma honesta. Há igualmente bons estudantes e jovens com princípios e valores, embora em percentagens baixas e decrescentes no tempo. De entre estes, destacam-se, sem qualquer dúvida, as jovens.

A maioria dos cidadãos sofre e são-lhe retirados os seus direitos sobre a terra, vêem os recursos florestais, faunísticos e mineiros serem delapidados por predadores estrangeiros que só podem assim proceder pelas alianças com moçambicanos que detêm poderes e influência aos vários níveis e ficam satisfeitos com os "amendoins" dos negócios. Sabe-se de ilegalidades, alta corrupção, concentração de riquezas com fontes não-transparentes de enriquecimento, neo-patrimonialismo e clientelismo na distribuição de negócios. O povo moçambicano não merece estas elites que não são elites, mas sim gente desavergonhada que se articula em grupos de eventual cariz mafioso e com práticas gangsteristas. Muitos deles estão apagando o seu percurso de libertadores e transformaram-se em vendedores da pátria. Estarão seguramente referidos nas páginas douradas e negras da nossa história. Muitos dos libertadores precisam agora de ser libertados, mas, por razões biológicas, não terão essa felicidade.

O PAPEL DA UNIVERSIDADE

É comum dizer-se que a universidade tem três funções: o ensino, a extensão universitária e a investigação. Não vou aqui desenvolver estes conceitos nem como se operacionalizam. Vou simplesmente referir alguns aspectos gerais, que permitirão pensar acerca da universidade em Moçambique, hoje.

A universidade é considerada como o cume do conhecimento e do saber organizado, sistematizado e abstracto, e também do conhecimento adaptado às realidades para tornar possível mudanças dedesenvolvimento. Mudanças no bem-estar da maioria da população, na evolução das sociedades assente em valores democráticos, na formação e dignidade do Homem, na inovação e na tecnologia, na competitividade da economia e no desenvolvimento de um país progressista e com prestígio.

Para que a universidade assuma esse papel, deve ser necessariamente autónoma cientificamente, não-partidária, laica e intercultural. E aqui não há meios-termos. O académico, se membro de um partido político ou tendo interesses económicos, encontrará necessariamente conflitos no exercício das suas funções. O conhecimento que transmite, utiliza ou que sirva de base para a investigação, será normativo em função de interesses políticos, de negócios ou pessoais. Muitos poderes procuram possuir o controlo da universidade, considerando-a um dos pilares do aparelho ideológico do Estado e da sociedade. Das universidades, saem homens e mulheres que poderão ser influentes na vida social, económica e política. Ganhá-los para as fileiras partidárias e capturá-los com benesses, sobretudo para aqueles que vêem no canudo um instrumento de oportunidades somente em beneficio pessoal, é uma estratégia quase que universal.

A universidade deveria ser o centro de produção de conhecimento. Investigar é a base do saber, da inovação, do desenvolvimento cognitivo, da sistematização e do desenvolvimento das sociedades; e também da dúvida, da "inconclusão", da tormenta mental. Algo falta ao académico que possui poucas dúvidas, que é assertivo, que não possua algum "despenteio" mental, que não questiona sempre, mesmo e principalmente após alguma conclusão. A investigação tem resultados com o questionamento permanente com o trabalho metódico e metodológico, considerando o conhecimento pré-existente e o domínio profundo dos contextos. Uma velha e famosa economista respondeu a uma pergunta de um dos seus discípulos sobre o que ela sugeria para se ser um bom cientista. Ela disse: conhecimento profundo e sempre insatisfeito com a teoria, com o método da ciência, com a história e com ocontexto em que se trabalha. E continuou: trabalho incessante sem relógio, muita imaginação e criatividade. Finalmente, rematou: ser-se generoso e amar a profissão e os jovens.

A universidade que não investiga, que não produz conhecimento, transforma-se necessariamente o ensino superior na 13ª até à 17ª classe secundária. Os docentes serão burocratas do ensino e relatores de manuais; os estudantes serão meninos de canudo com pouca cultura e ignorantes; os funcionários não terão a percepção que a "fábrica" onde trabalham é do intelecto e do Homem. Não investigar transforma a universidade em fotocopiadora institucional do conhecimento, sendo que a fotocópia é sempre de pior qualidade que o original. E a fotocópia da fotocópia pior será.

Para se investigar são necessários recursos diversos, carreiras profissionais incentivadoras, disponibilidade de tempo onde o "pensómetro" não possui o horário de relógio. As instituições de investigação necessitam ser pacientes no tempo e até admitir, no extremo, resultados nulos. As equipas de investigação precisam de autonomia, liberdade e valorização individual. A ética é questão fundamental na aplicação das metodologias e dos métodos, no funcionamento da equipas e dos investigadores individualmente. Mas a investigação deve ser selectiva, monitorada, avaliada e responsabilizada num quadro de regras estabelecidas.

Os resultados da investigação necessitam de debate, de requestionamento, de novas investigações. Publicar em revistas indexadas de especialização e em livros, participar em redes de conhecimento e de cooperação, estar presente em conferências internacionais, faz parte da internacionalização da investigação que não pode ser autárquica ou quinta de vaidades. Isto significa muitos recursos e sacrifícios.

Não se pode pensar que a investigação e os investigadores sejam apolíticos. O que é desejável é que não estejam funcionalmente articulados a partidos e ao sistema do poder, ou que dependam de agendas políticas. Os investigadores e as instituições financiadoras têm sempre motivações de diversa ordem e não só de natureza política. A investigação pretende chegar à veracidade dos factos. Um grande professor dizia que o investigador, ao iniciar o trabalho, já quase que quer uma determinada conclusão. E acrescentava: nisso não há nenhum mal. É sim anti-ético, desvirtuar metodologias, alterar informações e resultados, ou interpretar e concluir sem consistência e coerência com os resultados dos trabalhos. A investigação, sobretudo nas ciências sociais, pode estar orientada por motivações e de intervenção política e social para se chamar à atenção acerca dos problemas das sociedades. Afinal isso é que é investigação.

A UNIVERSIDADE EM MOÇAMBIQUE, HOJE

A universidade em Moçambique não poderia estar isolada do contexto apresentado. Há muito pouca investigação no ensino superior, assim como no país em geral. Destacam-se, porém, umas poucas excepções, de reconhecido mérito e qualidade. As áreas sociais e políticas são sobretudo trabalhadas em organizações da sociedade civil que se constituíram devido às dificuldades de investigar nas universidades. Não são afectados recursos, a carreira de investigador não é estimulante, a burocracia universitária não se coaduna com a flexibilidade da gestão de projectos de investigação, a docência ocupa muito tempo, entre outras razões. No sector privado do ensino superior, estas dificuldades são porventura mais profundas. A investigação não dá retornos financeiros ou tangíveis, ocupa espaços, equipamentos e tempos dos docentes. Concorrer em candidaturas públicas sem possuir uma base de investigação é quase uma aventura. Por isso as universidades devem ter investimentos iniciais que permitam constituir equipes e trabalhos que façam ganhar competitividade nos concursos para investigação. Muitos docentes não possuem o espírito de investigação, não vêem nela algum interesse material ou de carreira. Investigar dá muito trabalho e dedicação, tornando-se incómodo pelo funcionamento sem relógio do "pensómetro".

As universidades multiplicaram-se como cogumelos, muitas vezes sem condições de abertura em infra-estruturas, equipamentos e corpo docente adequados. O orçamento para as universidades públicas, medido pelo indicador meticais por docente ou por estudante, é muito reduzido quando comparado com países desenvolvidos e com os vizinhos da região austral de África. A orçamentação no sector privado, pressionado pelo objectivo da maximização do lucro, da criação de patrimónios e da promoção de imagens, é todavia mais baixa. O aumento do número de estudantes não foi acompanhado pela formação do corpo docente. O investimento em infra-estruturas é limitado e geralmente centrado no aumento da capacidade de salas de aulas e não em laboratórios, bibliotecas e acesso às novas tecnologias. Há turmas com mais de 100 estudantes justificadas pela acessibilidade ao ensino superior. As quotas por província que demagogicamente assenta no discurso da equidade, tem por detrás profundas injustiças e agride o princípio a meritocracia. A preparação dos estudantes, que chegam à universidade, tem vindo, em média, a decrescer.

Nestas condições, é deduzível que a qualidade do ensino superior esteja a decrescer. Todos disso sabemos, não obstante alguns discursos, supostamente intelectualizados, chamando a diferentes conceitos de qualidade em contextos específicos. Por quê a dificuldade de incluir parâmetros quantitativos na avaliação das universidades e de se atribuir um ranking? Deixar as coisas na penumbra é uma estratégia de compromisso, porque muitas universidades têm por detrás gente a quem se torna difícil impor exigências de condições de abertura e de classificações negativas. Um dia um responsável do ensino superior, que tinha prometido no início do seu mandato travar a criação de novas universidades, segredou-me dizendo: é difícil não abrir uma universidade quando por detrás dela estão determinados "chefes". O ministério de tutela do ensino superior lança de vez em quando a fumarada da avaliação de qualidade. Passaram-se anos sem resultados e, quando existem, os relatórios são o que o sistema nos habitua: vagos, difusos, tímidos e politicamente correctos.

A maioria dos estudantes não possui hábitos de leitura e de trabalho persistente e árduo. Muitos mal escrevem e o raciocínio lógico matemático é um quebra-cabeças, se é que existe o esforço para existir o risco de quebrar a cabeça. A exigência da docência é, por regra, limitada porque é mais cómodo ser-se benevolente, evita reacções e dá menos trabalho. Estudantes mal preparados, muitos discentes por docente, alguns com pouca exigência e pedagogias não centradas nos estudantes, compõem o quadro de reprodução de um ensino necessariamente medíocre.

No contexto da sociedade e nas formas de reprodução do poder descritas, pode-se questionar se a mediocridade do ensino é uma preocupação, um desafio ou é um propósito de reprodução do poder. Produzir técnicos mais ou menos competentes, mas acríticos, a quem se ensina a fazer e não a pensar, é um modelo em voga no mundo e que nós copiamos, naturalmente que de forma acrítica e conveniente para o sistema. Ou será por acaso que uma parte significativa dos filhos das elites estuda no exterior? Nisso não está o mal, o pior é que é alguma dessa elite que discursa sobre os desafios da universidade e sobre a qualidade do ensino. A isso chama-se hipocrisia.

A universidade não está livre da deterioração dos valores da sociedade. Muitos docentes passam pouco tempo na universidade e dedicam-se a negócios, à política e a múltiplas funções incluindo a de turbo-docente. Não são os docentes os principais responsáveis por esta realidade, mas sim as condições e as oportunidades oferecidas à profissão. Existe aqui um compromisso silencioso de ambas as partes.

Hoje, em Moçambique, não sei se existem universidades, públicas ou privadas, que não sejam alinhadas com o sistema político dominante. Há reitores não-membros da Frelimo? Quantos não-membros da Frelimo ocupam postos de directores de faculdade e de departamentos nas universidades públicas? Quantos proprietários/donos/sócios de universidades sabem o que é uma universidade e impõem aos reitores lógicas capitalistas como se fosse uma empresa de produção de um qualquer bem ou serviço? Sugiro-vos para que vejam patrão por patrão de universidade e concluam sobre o seu percurso académico, profissional, político e ético. Quantos docentes nas universidades públicas assumem posicionamentos críticos fundamentados? Realizam-se reuniões partidárias dentro das universidade com a presença de dirigentes universitários. E existem células do partido, neste caso da Frelimo. Sobretudo nas universidades públicas, os docentes são pressionados a serem membros da Frelimo. Isto é um abuso do poder, autoritarismo e espírito de todo poderoso. Isto é falta de vergonha misturada com despotismo.

Quando é a própria universidade que cria formas subtis de silenciar vozes, ou é a própria comunidade académica que se amedronta do seu papel pensante e de comunicação sobre as realidades, então algo está muito mal. Quando é o Presidente da República que nomeia reitores das universidades públicas, então a universidade perdeu algo de fundamental que é a sua equidistância política. Quando as universidades públicas ficam partidarizadas, então deixou de existir universidade, porque a autonomia e as liberdades de produção científica, de expressão e de comunicação, estão limitadas. A biblioteca Gilles Cistac mudou de nome por erros de procedimentos administrativos? Por que é que a Universidade Eduardo Mondlane não se pronunciou em relação ao baleamento de um dos seus jovens notáveis docentes, o Doutor José Jaime Macuane? Por que é que docentes que fazem a suas teses críticas pagam facturas no seu reenquadramento pós-formação?

É URGENTE LIBERTAR A UNIVERSIDADE

A universidade, supostamente sendo uma instituição de elites, é também o reflexo das sociedades, dos sistemas políticos, da situação económica, da cultura e da história. O confronto de teorias e ideias é condição para o desenvolvimento das ciências. A universidade tem a obrigação de trazer a público o debate das realidades e da crise. Muitos dos seus actores, a comunidade académica, e quase todos os dirigentes da universidade, actuam na lógica do fere rider, pois os benefícios do silêncio, mesmo que discordante, são mais vantajosos que o risco do contrário. Qual foi a universidade que teve uma actuação interventiva e independentemente perante a situação actual do país? Quantos académicos o fizeram, e, se o fizeram, foi em eventos organizados pela universidade? Esta universidade está capturada por um sistema fascizante.

Qual é a universidade em Moçambique que apresenta estudos com evidências e sugere opções para a governação? Os investigadores que o fazem de forma critica, enquanto conceito epistemológico e não político, não o fazem no âmbito de actividades universitárias. E, ao fazerem, são apelidados como se pertencessem à oposição e a mando de mão externa. Felizmente que já não se ouvem as indignantes e mal-educadas expressões dos "apóstolos da desgraça", "falam-falam e não fazem nada", etc. Mais mão externa que os programas do FMI? Mais subjugação quando a saída da crise depende de recursos de "toupidir"? Esta universidade não é universidade.

A universidade em Moçambique deveria estimular o debate, a formação do espírito crítico, o desenvolvimento da cidadania dos jovens. Hoje, é uma universidade em geral mediocremente tecnocrática que, por detrás dessa pretensa tecnocracia, esconde a formatação de uma sociedade futura de pessoas com canudos, onde a maioria é "freeridistas". Esta universidade não forma ou forma poucos pensadores. Esta universidade não presta. A universidade deveria investigar e produzir conhecimento.

Esta universidade, é, em grande parte dos casos, a continuação do nível secundário. Esta universidade não forma; ela formata, deformando o intelecto. Esta universidade não liberta, aprisiona mentes. Ela é um obstáculo ao desenvolvimento do conhecimento a longo prazo. Esta universidade não serve o desenvolvimento, a democracia e o progresso. Mas esta universidade é coerente com o sistema neo-patrimonialista, autoritário, de governações pouco competentes, onde o mérito não é considerado, talvez mesmo indesejado.

Sendo estas principais, deve-se ter esperança. Esperança fundada na existência de docentes e jovens responsáveis e cidadãos demérito, que lutam pela liberdade. Existem vontades de criar a universidade, remando-se contra a falta premeditada de recursos, de organizações facilitadoras e acolhedoras de iniciativas. Esses são poucos, mas são os melhores. Das suas coragens dependerão as mudanças. Neles, os que querem uma boa universidade, deve-se concentrar a atenção. Mas como acreditar nessa possibilidade, se isso é contra o sistema?

A libertação desta universidade, que temos, depende, em parte, do sistema político. Mas este não a libertará. Tem de ser a universidade a libertar-se. Existem muitos espaços de libertação. Lutas estudantis por melhores condições de ensino. Por docentes mais formados, dedicados e com mais tempo na universidade e apoio pedagógico. Mais pluralismo de ideias e democracia. Mais participação da comunidade académica na vida e nas decisões. Uma comunidade académica com mais consciência social. É necessário criar a universidade mais activa em defesa da democracia, da inclusão, defensora dos direitos dos grupos sociais mais pobres e vulneráveis.

A universidade tem de assumir o seu papel. Jovens que não são rebeldes, inconformados, reivindicativos e até provocadores, perdem a grande oportunidade de viver a vida intensamente e de se formarem como cidadãos que lutam por ideais da justiça, do mérito, das liberdades, da defesa dos mais vulneráveis e também para si próprios, pela sua dignidade e competência, pelo exercício da sua cidadania. Contra a corrupção, a falta de transparência, as "boladas2, o favoritismo e a mediocridade. A abertura de um ano lectivo é dedicada a toda a comunidade académica, mas principalmente aos jovens. É necessário que não sejam uma geração perdida. Lutem! O quadro constitucional permite muita luta.

O poeta angolano Pepetela, diz que a sua, que coincide com a minha, é a última geração utópica. É necessário recuperar a utopia transformadora, libertadora do Homem. Mas é preciso ser utópicos sempre, não como muitos que de utópicos se transformaram em burguesinhos e novos-ricos em defesa da tranquilidade e escudando-se na resignação reflectida na expressão "fazer o quê"? Jovens, tanto docentes como discentes, é preciso voltar a dizer, A luta continua! Sempre a luta continua.

Por João Mosca

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